Por Lenio Luiz Streck e Marco Aurélio de Carvalho, no Conjur: Lemos que a já vitoriosa Carta aos Brasileiros, redigida por professores e antigos alunos da Faculdade de Direito da USP, não falou em corrupção. Para alguns, a Carta é omissa, porque não fala de coisas que poderiam comprometer a democracia.
Também há críticas ao ex-ministro Celso de Mello, por este ter assinado algo que vai na contramão do que dissera num julgamento.
A Carta, de fato, não fala em corrupção.
Também a Carta não fala do papel de determinados veículos da mídia e de determinados jornalistas em suas questionáveis relações com a operação “lava jato”, que, como se sabe e não se pode negar, cometeu inúmeros crimes para supostamente combater crimes. E, sem a “lava jato”, o governo atual não existira.
A Carta também não fala dos 700 mil mortos pela Covid-19. Da asfixia de Manaus. Do aviltamento das instituições. Das emendas constitucionais bichadas. Do nefasto orçamento secreto. Da fome que atinge mais de 30 milhões de brasileiros. Da degradação humana.
A Carta omite a bala perdida. O racismo crescente. O esquecimento da violência de gênero. Do meio ambiente esquecido. Das mortes de Bruno e de Dom. Das mortes de Marcelo, em Foz do Iguaçu, e de Genivaldo, num camburão da Polícia Rodoviária Federal.
Não, de fato, a Carta não fala das universidades sucateadas. Dos pastores do MEC, das compras exóticas dos quartéis e de coisas desse tipo.
A Carta fala, sim, da condição fundamental de possibilidade de uma República: a existência da democracia. A Carta trata da democracia porque ela está em risco por todas as coisas de que a Carta não falou. Esse é o ponto.
A História e a literatura nos socorrem para entender os críticos da bela iniciativa a que aderimos com orgulho e alegria. Arquíloco, da poesia lírica grega, dizia: a raposa sabe de muitas coisas, mas o ouriço sabe de uma grande coisa. No século XX, o grande filósofo Isaiah Berlin usou essa mesma ideia para dividir pensadores entre raposas e ouriços. As raposas reconheciam diferentes ideias e valores; os ouriços explicavam e viam as coisas todas por meio de uma única ideia ou princípio mestre.
Num mundo complexo, ser raposa é mais fácil. Raposas simplificam.
Mas, como o ouriço de Arquíloco, a Carta centra foco nas coisas grandes que causam as outras.
O que estamos vendo é a mobilização pacífica e engajada de amplos setores e segmentos da da sociedade brasileira na defesa firme e intransigente do Estado de Direito, princípio básico que pode salvar nossa democracia. Um movimento plural, sim, mas que sabe de uma grande coisa. Como o ouriço. Como deve ser.
Espiolhar defeitos da Carta aos Brasileiros pode dar uma lacração típica de raposa. Mas o ouriço sabe demais. “Estado de Direito, democracia, ok, mas e a corrupção?”, pergunta a raposa. Pois é. O país pegando fogo, e um certo lulocentrismo ainda impede alguns de enxergar um palmo à frente do nariz.
E a corrupção? E a violência? E os cães de rua? E a fome no mundo? E a fila no banco? Ora, para explicar por que não se falou de flores, levado às últimas consequências, esse raciocínio nada significa. E por uma razão muito simples: sempre faltará alguma coisa para dizer. Sempre há o que criticar, o que melhorar, enfim.
Diante de uma Carta em defesa da democracia, num dos momentos mais críticos da História do país, assinada amplamente por gente de todas as correntes, o foco tem de se voltar para as convergências e para as questões fundamentais.
A raposa que se quer ouriço não é nenhum dos dois.
Às vezes, as raposas falam muito, mas não dizem nada.
Imagem: reprodução/charge: Sidney Falcão de Carvalho

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